"Sabe, Pai, ainda não entendi. Viemos à praça, pensei ser um passeio. Estranhei, pois ele não tinha esse hábito, mas fui feliz.
Lá chegando, me deu as costas, entrou no carro e nem disse adeus. Olhei para os lados, nem sabia o que fazer. Ainda tentei segui-lo, mas o carro era muito rápido...
Vaguei assustado pelas redondezas... Às vezes parava no mesmo lugar, sempre com a esperança de que meu dono voltasse para me buscar. Muitos dias se passaram e as noites pareciam não terminar. Custei muito a acreditar que ele realmente tinha ali me deixado.
Que teria eu feito de tão mal, para desprezar assim o amor de um animal?
À noite, quando ele chegava, eu abanava o rabo, feliz, mesmo que ele nunca viesse ao quintal me ver.
Às vezes eu latia, mas tinha pessoas estranhas no portão, não podia deixá-las entrar sem avisar meu dono. Quem sabe foi minha dona quem mandou, eu devia estar lhe dando trabalho...
Como sinto saudades das crianças! Elas me adoravam! Puxavam-me a cauda, às vezes. Eu ficava uma fera, mas logo éramos amigos novamente. Devem ter dito que fugi, provavelmente em busca de uma aventura e não soube voltar. Imagino que tenham chorado, pois realmente me amavam, como eu ainda as amo.
Hoje só bebo água suja. Estou magro e faminto. Meus pêlos já caíram quase todos e ainda fui atropelado por não saber andar nas ruas.
Não sei se por sorte ou por azar eu ainda pude andar. Sabe, Pai, faz muito frio à noite, no canto de chão molhado que arrumei para ficar.
Creio que ainda hoje vou me encontrar Contigo. Peço-vos, então, não mais por mim, mas pelos meus irmãozinhos, pois sei que aí no céu a maldade dos homens não vai mais me alcançar:
Mande-lhes pessoas que tenham deles compaixão pois, como eu, sozinhos e abandonados não mais viverão.
Amenize-lhes o frio, igual ao que agora sinto, com o calor dos atos de pessoas abençoadas.
Diminui-lhes a fome, tal qual a que sinto, com o alimento do amor que me foi negado.
Mata-lhes a sede de todos os momentos, com água pura de Teus ensinamentos transmitidos ao homem.
Alivia-lhes a dor das doenças, afastando a ignorância da Terra que vem da ignorância dos homens.
Ampara as cachorrinhas prenhas que verão suas crias morrerem de fome, frio e pestes, sem nada poderem fazer.
Tire o sofrimento dos que estão sendo sacrificados em atos apregoados como religiosos, em laboratórios e tudo o mais, tirando das mãos humanas o desprezo ao que por Ti foi também criado.
Abranda a tristeza dos que, como eu, foram também abandonados, pois entre todos os males foi esse o que mais me doeu...
Recebe então, Pai, nesta noite gélida, a minha Alma, pois não será mais meu o sofrimento, mas dos que ficarem, e por eles vos peço."
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